terça-feira, 27 de outubro de 2020

Florença e o David de Michelangelo

                        Nenhuma imagem na história da arte ocidental, com a possível exceção de Monalisa, há sido reproduzida tantas vezes como o David de Michelangelo. Em Florença, especialmente, os seus doppelgängers¹ proliferam: a cópia de mármore de Luigi Arighetti (Florença,1858-1938) na Praça da Senhora, a cópia de bronze de Clemente Papi (Florença,1803-1875) na galeria Michelangelo, sem mencionar as réplicas industriais de gesso, de plástico, de latão ou até de ónix ( um David negro) que se vendem nas lojas de souvenir, em uma das quais se chamam , Loja David . Uma cópia da estatua David se ocupa em frente a uma sauna gay em Florença, como em muitas outras saunas gay da Europa.
                           Fora do Palazzo Vecchio, os vendedores de postais comerciam qualquer imagem concebida de David, em estilos diferentes como por exemplo usando um avental sobre o seu torso, cueca ilustrada na virilha, postais em que ele e o gordo Baco dos Jardins de Boboli aparecem justapostos com os dizeres " antes e depois" no que talvez seja o exemplo mais vulgar, de seus órgãos genitais. Alguns deles com óculos de sol sobre os pelos pubianos e a expressão "Uau Florença"! na parte superior. Semelhantes vulgarizações, como o bigode desenhado no rosto da Monalisa, faz pensar em um certo desconforto diante as grandes obras de arte; sobre o David, sugerem um desejo de aplacar a sua intensidade através da desconfiguração ou o ridiculo.
                            Ao mesmo tempo, atesta a força sensual da estátua, aquela carnalidade.Walter Horatio Pater (Londres-1839-1894)escreve que o artista Michelangelo adorava as pedreiras de Carrara, aqueles estranhos picos cinzentos que mesmo ao meio-dia transmitiam para qualquer um o vislumbre,a solenidade e a calma do pôr-do-sol;na coroa de David ainda há um pedaço de pedra não polida, como se com aquele toque ele quisesse manter sua conexão com o lugar de onde foi extraído. Ao observar a reprodução do rosto de David em um mouse de notebook comprado à galeria do Museu da Ópera de Duomo pode-se analisar melhor um outro lado da obra à qual Pater se referia, "sua expressão é inquieta e insegura, como se questionasse o estilingue heróico pelo qual ele será lembrado nas reproduções, aquele olhar que dança à beira da contrição, endurece em algo parecido com a grosseria, e o rosto assume uma aparência de amargura e mesquinhez".O verdadeiro David, por outro lado, tem uma aura de estranha delicadeza até mesmo da fragilidade, com a qual sua própria enormidade o contrasta paradoxalmente.
                            Um bloco de pedra de cinco metros usado para esculpir a peça foi extraído em 1464 para a Ópera de Duomo mas nunca foi usado porque o escultor que fez o esboço, nas palavras de um contemporâneo de Michelangelo, não era familiar o suficiente com sua arte. Alguns anos depois, o escultor Andrea Sansovino (Monte San Savino,1467 - 1529) tentou persuadir o conselho da Ópera de Duomo a lhe dar uma chance; porém, apenas Michelangelo apresentou uma proposta que não exigia a adição de outras peças de pedra e, por isso, foi-lhe atribuída a peça de mármore.Na verdade, é graças à precisão com que Michelangelo usou este bloco que hoje aquele pedaço de pedra permanece não esculpido na cabeça de David, Michelangelo exibiu pela primeira vez aquela qualidade de tratamento de material conhecida como terribilitá;a capacidade de aterrorizar o espírito, a força avassaladora, pela qual mais tarde se tornou tão famoso, escreveu John Addington Symonds (Englaterra 1840 -1893)em sua biografia do artista.
                          A estátua é imponente, não apenas por seu tamanho, sua majestade e seu poder, mas por causa de algo feroz em sua concepção. Talvez tentando ser rigorosamente fiel à história bíblica, Michelangelo estudou um menino cujo corpo ainda não estava totalmente desenvolvido. David, para colocar a questão claramente, é um idiota colossal.
                           
                           Théophile Gautier (França, 1811—1872)escreveu que o seu corpo lembrava um garçom de mercado por causa da largura do tórax, da profundidade do abdômen e da corpulência geral; não se desenvolveu na mesma escala que as mãos e pés enormes e a cabeça pesada. Sentimos que ele tem alguns anos pela frente antes de se tornar um homem totalmente desenvolvido,que passou da adolescência à maturidade de sua força e beleza. Essa observação cuidadosa das imperfeições do modelo em um determinado estágio de seu desenvolvimento físico é muito visível e não é muito agradável em uma estátua de cerca de quatro metros de altura.
                            Tanto Donatello (Florença, 1386 -1466) quanto Verrocchio(Florença,1435 —1488) trataram David com o mesmo realismo, mas trabalharam em menor escala e em bronze. Há uma insistência neste ponto, porque os estudiosos de Michelangelo tendem a ignorar a sua extrema sinceridade e naturalismo nas primeiras fases da sua carreira. Quando a estátua foi concluída em 1504, Botticelli (Florença,1445–1510), quis colocá-la na Loggia del Lanzi²; outros apostam no próprio Duomo. Por fim, foi decidido que o David ficaria localizado em frente ao Palazzo Vecchio, embora lá não tenha sido uma tarefa fácil.
                         Primeiro, as paredes da Ópera de Duomo tiveram que ser derrubadas. O David se movia muito devagar,observou Luca Landucci(Florença,1436–1516) em seu diário,porque estava amarrado na vertical e suspenso para que seus pés não tocassem o solo. A transferência durou quatro dias e quarenta homens foram necessários por quase quatro séculos, David levou uma vida relativamente pacífica na Piazza, exceto por um dia ruim em 1527, quando uma perturbação da ordem ocorreu e como resultado ele perdeu seu braço esquerdo.
                           O incidente demonstra, mais uma vez, o estranho fato de que as coisas mais difíceis podem ser excepcionalmente frágeis. O mau tempo também cobrou seu preço e, em meados do século 19, quando a Itália se unificou e Florença se preparou para um breve momento de glória como capital, historiadores da arte, políticos e restauradores começaram a insistir na necessidade de buscar um novo lar para David. Em 1852, uma comissão reunida para relatar sobre os perigos que David enfrentava e sobre os sistemas que deveriam ser adotados para evitar seu colapso votou unanimente a favor da relocação da estátua, mas não conseguiu chegar a um acordo sobre qual deveria ser o novo destino. A loggia do antigo mercado foi proposta, bem como a Loggia del Lanzi (novamente) e a loggia degli uffizi, mas, por razões que vão desde a falta de luz ao medo de que a estátua pudesse ficar sujeita aos danos dos classes mais baixas, os três lugares foram descartados; o mesmo aconteceu com as Capelas Medici e Bargello. finalmente, no final da década de 1860, outra comissão concluiu que a única maneira de fornecer um refúgio para a estátua mais colossal da era moderna era construir um templo para esse propósito exclusivo. essa plataforma seria projetada pelo arquiteto Antonio di Fabris como um anexo da accademia di belle arti; relembrando o ocorrido em 1504, a comissão considerou que o mais prudente seria deslocar a estátua para o seu novo local antes do início da construção, para que não fosse necessário derrubar mais paredes. a mudança foi cuidadosamente planejada.
                          No verão de 1873, alguns trabalhadores construíram uma estrada que cruzava a Piazza della Signoria, dobrava para direita na Via de Calzaiuoli, ao redor do Duomo, e fazia uma curva acentuada à esquerda na Via del Cocomero (Calle de a Melancia, que mais tarde seria rebatizada de Via Ricasoli) antes de chegar ao destino na Accademia. Terminada a trilha, o David foi retirado de seu pedestal e colocado em uma espécie de carroça sobre a qual foram colocados andaimes de madeira que impediam seus pés de tocarem o solo. Finalmente, em 30 de julho, David começou a viagem para sua nova casa, uma jornada que duraria sete dias, embora a distância que ele teria que percorrer pudesse ser percorrida a pé em dez ou quinze minutos. Em uma das poucas ilustrações da transferência, uma gravura publicada na Nuova Illustrazione Universale de janeiro de 1874, apenas a metade superior do torso de David é visível acima das paredes do andaime. Seu famoso aceno de cabeça, seus olhos olhando duvidosamente por cima do ombro esquerdo, emprestam um novo fato a essa imagem, como se o que ele estivesse olhando com tanta preocupação fosse na verdade o desaparecimento gradual da única casa que ele conheceu.
                       
                          Nem todos ficaram felizes com a mudança. O David de Michelangelo não estará mais na Piazza della Signoria, um jornalista anônimo lamentou no Giornale Artistico em 1º de agosto de 1873. Ele foi embalsamado e foi visto em uma engenhoca de madeira e ferro no caminho para seu túmulo no Cemitério da Arte, comumente conhecido como Accademia delle Belle Arti. Uma vinheta do mesmo período mostra David se inclinando para frente e saindo da gaveta para falar com os cavaleiros tolos e odiados que presumivelmente orquestraram sua mudança de local. Em uma carta escrita ao Ministro da Educação Pública, foi levantada uma reclamação sobre o degradante vagão no qual o David havia sido trancado, como se a chuva e o vento que lentamente erodem seu mármore não fossem literalmente muito mais degradantes.
                           Embora a retórica tenha terminado assim que o David foi guardado com segurança na Accademia, a irritação permaneceu com o vazio que havia permanecido entre as estátuas na praça, o que levou à sua ereção em 1910 (as coisas estão lentas em Florença) uma réplica de mármore que hoje muitos turistas confundem alegremente com a verdadeira.
                          Os mais astutos, é claro, enfrentam as longas filas que se formam na frente da Accademia para ver David em seu verdadeiro e inimitável esplendor. Visto que agora vive em uma tribuna, era de se esperar que tivesse adotado uma expressão de arrogância, embora de fato, e apesar das mudanças de circunstâncias, seu aspecto de vulnerabilidade só pareça ter se intensificado com o passar dos anos. Talvez seja devido à idade ou à dor persistente no braço esquerdo, ou no segundo dedo do pé esquerdo, quebrado por um vândalo em 1991. Sei que inventar tal motivo é supor que a estátua tem uma identidade diferente da figura daquele que representa ou mesmo o mármore com o qual foi construído; na verdade, envolve admitir que a estátua tem uma consciência. E como seria essa consciência, ao mesmo tempo pesada e frágil? Que tipo de memórias um pedaço de pedra pode conter? que só podemos imaginar

-tradutor e interprete: Tiago luis lima silva
-obra: Florence: A delicate case.2002 by David Leavitt
- todas as imagens foram extraídas do website Pinterest, com exceção da imagem do transporte de David cuja fonte foi stock photo.

 1- sósia ou duplo não-biologicamente relacionado de uma pessoa viva, por vezes retratado como um fenômeno fantasmagórico ou paranormal e geralmente visto como um prenúncio de má sorte, ou ainda para se referir ao "irmão gêmeo maligno" ou ao fenômeno da bilocação.

 2- edifício na esquina da Piazza della Signoria em Florença , Itália , adjacente à Galeria Uffizi . É constituído por amplos arcos abertos para a rua. Os arcos apoiam-se em pilastras agrupadas com capitéis coríntios . Os arcos largos atraíram tanto os florentinos que Michelangelo propôs que eles fossem continuados em toda a volta da Piazza



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